Thursday, July 13, 2006

Dom Lustosa




ORAÇÃO
Dignai-vos, Senhor, aceitar a caminhada de nosso irmão Dom Antônio de Almeida Lustosa rumo ao altar.
Ele, que em vida soube ser vosso servo fiel, imolando-se no pastoreio das almas, ensina-nos hoje admiráveis exemplos de virtudes cristãs praticadas com tanto zelo sacerdotal.
Concedei, Senhor nosso Pai, a graça que por sua intercessão vos pedimos. Amém.

Pai-nosso, Ave-Maria, glória...

Imprima-se
Fortaleza, 25/10/1991
Monsenhor Antônio Souto - Vigário Geral da Arquidiocese de Fortaleza

Wednesday, July 12, 2006

Dom Lustosa no livro Crestomatia


CRESTOMATIA, segundo seu organizador, Radagasio Taborda (1936, pp.10-11), é um compêndio voltado para a aprendizagem da nova ortografia firmada pelas Academia Brasileira de Letras e das Ciências de Lisboa e sancionada por Getúlio Vargas por meio do decreto n 20.108, de 15 de junho de 1932. Reunindo textos em prosa e verso de autores renomados como José de Alencar, Olavo Bilac, Bocage, Camões e Machado de Assis, recomendava-se sua leitura atenta, sob a direção “esclarecida” do professor, para uma análise e interpretação dos textos como meio mais adequado para a transmissão ao conhecimento da língua culta. Logo a seguir, textos de Dom Lustosa que integravam tal coletânea.

O CAMPÔNIO E O PASSAREDO (1)
Ele amanhara (2) o campo com amor. Madrigava mais que o sol; a lâmina polida da sua enxada, repolia-se muitas vezes na leiva (3) antes de refletir os raios da alvorada. E não muito para a noite em que o luar debruxava , (4) sobre os torrões desfeitos, a figura do lavrador, tosca e rude como êle mesmo.
Terra assim regadas, com tão abundante suor, não deviam ser estéreis e não o eram; muito rica seara cobriu a gleba (5) reconhecida.
As espigas sazonadas (6) vergavam já ao doce peso dos nutridos grãos. Mas os pássaros desciam, às nuvens, lá das profundezas dos céus e dos remotos horizontes. O lavrador declarou-lhes guerra de extermínio e repetia aos seus campônio: “Morte, morte a esses salteadores que devoram a messe, (7) aves daninhas, porque roubais o fruto dos meus labores? Delito cruel que praticais entre gorgeio, como gargalhando, escarcenendo da vítima que deixareis na miséria.
Criaturas sem alma, sem consciência, cáiam sobre vós as minhas iras e o chumbo dos meus coloronos.”
O bando cada vez mais se dizimava aos golpes da vingança do lavrador. Laços por todo o campo, armas de fogo a vomitar a morte a cada instante.
Não houve trégua, nem clemência... No lapso de poucos dias não havia mais um pássaro em toda a vastíssima seara. O Colmo (1) flexível do trigo não mais a balançar ao peso do passaredo; a brisa; a triste brisa não mais mesclava (2) as notas festivas dos alígeros cantores ao aflar (3) das fôlhas do trigal.
Salvou-se um só, apenas um representante dos bandos já extintos... Conseguira fugir um belo pássaro à guerra (3) impiedosa.
E lá no meio da floresta espessa, aflito, alaneado de saudade, o supérstite cantor assim clamava: “Um dia éramos livres; todo êste canto, sem limite algum, herdamos dos nossos antepassados. Uma horda de bárbaros sem coração, começou de (5) apavorar a tranqüilidade do nosso reino. Deitaram por terra a secular floresta, onde em cada árvore havia uma recordação e uma história dos nossos avós. Os ninhos que havíamos construído com amor, êles os destruíram por divertimento, sorrindo cruelmente ao pipilar dos pequeninos e aos soluções dos pais transidos de dor. Nada respeitaram: justiça, propriedade, comiseração até o último delito. Foragidos, nós pedimos hospitalidade na floresta distante, que tinha abrigo, mas minguado pão. Muitos não resistiram, e não puderam (6) esperar que as novas terras lhe fornecessem alimento bastante. Agora é que esses campos que são nossos, muito nossos, exclusivamente nossos, começavam a oferecer-nos os seus frutos.
Mas os invasores haviam jurado extinguir nossa raça... A hecatombe (7) não teve limites: fiquei apenas eu para clamar a desdita do meu povo. (pp.7-8)

(1) Passaredo: coletivo, bando de pásssaros.
(2) Amanhar o campo: limpá-lo das más ervas, cultivá-lo.
(3) Leiva: sulco aberto pelo arado.
(4) Debuxava: delineava, desenhava.
(5) Gleba: sinônimo de leiva; terra.
(6) Sazonadas: amadurecidas.
(7) Messe: ceifa, seara em ponto de ceifar.

(1) Colmo: diz-se do caule das plantas gamíneas.
(2) Mesclava: misturava;
(3) Aflar: soprar, bafejar;
(4) Fugir `guerra, ou da guerra.
(5) O verbo começar rege preposição a ou de.
(6) As formas do perfeito do verbo poder, e dos tempos que dele derivam, devem grafar-se com u: pudera e não poudera.
(7) Hecatombe: morticínio. Palavra de origem grega que significa: sacrifício de cem bois.

O SINEIRO DA ALDEIA
A história do sineiro é muito comprida, porisso, não digo senão que ele foi, como os outros homens, um mortal que só apreciou as cousas, quando se tinham já escoado.
Por mais de quarenta anos, ele tinha exercido escrupulosamente o mister de sineiro em sua aldeia natal. Era ele o homem que chamava os fiéis campônias para as funções religiosas. Falava cousas íntimas aos seus conterrâneos pela boca do sino. Sabia dar tal expressão aos dobres e repiques, tinha variações tão minuciosas, fazia tais matizes de tom, ritmo, fôrça e conservava tão fielmente as regras e convenções tradicionais que o sino em suas mãos se havia tornado a alma daquele povo. O dia de Natal era um dia de glória para o sineiro. Ele se tornava um artista. Com que gosto não esperava a hora matematicamente determinada para tanger o sacro bronze! E que ingênua vaidade não sorria em seus olhos, quando os estendia pelos vales e devesas enluaradas e via o movimento que ele despertava em derredor, povoando os trilhos e atalhos de tanta gente... Não sei o que sucedeu um dia. O velho sineiro não quis mais viver naquela aldeia. Retirou-se para a Capital. Como lhe foi duro aí o grangeio do pão! Esteve em mil tentativas malogradas, (1) em que se deteriorou (2) a saúde, a paz e o modesto pecúlio (3) que juntara. A felicidade, que as grandes cidades prometem aos inexperientes moradores do campo, também para o infeliz sineiro foi uma formidável mentira. A grandeza coletiva, o conforto público, a riqueza dos outros, tudo isso fascina; mas nada aproveitam ao ambicioso os bens que não são dêle. O sineiro foi cair num hospital onde devia terminar seus últimos amargurados dias. Bem perto se erguia a Catedral. Cada vez que os sinos da velha igreja se faziam ouvir, desciam grossas lágrimas pelas faces do sineiro. Notou a religiosa enfermeira o singular fenômeno, mas não obteve explicação alguma do pobre doente. A voz daquele grande sino, surgiam ao lado do sineiro os oito lustros e mais da sua vida aldeã; a saudosa terra se lhe antolhava através de lágrimas arrependidas... Chegou o dia de Natal. O sino da velha Catedral vibrou festivamente. Mais do que nunca se confrangeu (1) a alma do pobre doente. Quantas evocações! Nos anos anteriores, Natal era o dia mais alegre para o sineiro; nesse ano ao invés... Do fundo do coração pediu a Deus lhe levasse a alma para o Natal do Céu. Caiu no delírio. Pareceu-lhe estar na torre de sua aldeia a dar os últimos repiques festivos, momentos antes da missa do galo. Que prazer tão puro! Os sinos da Catedral continuavam a tocar e o enfermo, na exatidão febril da fantasia, cuidada ouvir os sinos que imaginariamente êle tangia. Crescia a onda de sons que desciam da Catedral, a agonia do velho sineiro precipitava-lhe a respiração e ele redobrava os esforços no vibrar os sinos fantásticos. O suor final porejou-lhe (2) na fronte e êle cuidada suar de repicar tanto, tanto... Pareceu-lhe então que sua querida tôrre se alongaa. Subindo, subindo sempre, penetrou no céu azul. Era a hora da Missa. Os sinos da Catedral calaram. O velho sineiro, ehxausto, cessou o repique para assistir à Missa... Já não delirava – ouviu entoar, em pleno Céu, o “Glória in excelsis Deo”. (3)

(1) Malogrado: sem resultado.
(2) Deteriorar-se: estragar-se.
(3) Pecúlio: soma de dinheiro acumulada pelo trabalho e economia. Cabedal.


(1) Confranger-se: angustiar-se.
(2) Porejar: sair pelos poros.
(3) Glória a Deus nas alturas.

HERÓI OBSCURO
“Pobre moço, quem diria?” “Como a gente se engana!” “Que matreiro, com aquela cara de sonso (1) heim?” “dizer que era religioso!”
Era o comentário do dia. Realmente, a surpresa foi geral, pois era nada menos que o caixa da fábrica, moço de confiança absoluta dos chefes, de procedimento inapontável e acusado de ter subtraído quantia grossa dos cofres do escritório. Bem que êle se quis defender, porém faltou-lhe sempre a voz. Mas defender-se como? Êle era o único que guardavas as chaves; no próprio bôlso dêle forma encontrados os envoltórios (2) dos pacotes das cédulas, ninguém podia ser apontado criminoso senão êle mesmo que entretanto recusava revelar o paradeiro do dinhiero.
Depois de um júri em que os juízes de fato unânimemente condenaram o infeliz caixa, êle, o pobre moço, entre lágrimas dos seus olhos e as dos seres mais queridos, na infâmia, partiu para o presídio distante. A despedida que o filho delinqüente (3) fez de sua extremecida mãe só pode ser descrita pelas lágrimas que não mais cessaram de correr dos olhos de ambos. O silêncio presidiu, esmagados, à cena dilacerante a que puseram têrmo os esbirros, (4) arrancando o filho dos braços maternos.
Do presídio, não chegaram notícias pelos anos números que dilataram o martírio do criminoso, não o da mãe, que sucumbiu depressa. Retirou-se e a família daquela terra em que a malsinara (1) um membro indigno. Nem ficava bem continuarem aliás pobres vítimas de um estouvado. Um irmão desse infeliz, que era operário da fábrica, estabeleceu-se longe daquele lugar de tristes recordações. Seus negócios prosperaram; mas não era feliz. Todos diziam que o irmão, tornando-se criminoso, tinha atraído castigos para a família inteira. Afinal um dia chegam notícias do presídio, as únicas do malfalado moço se obtiveram, mas eram notícias de sua morte. O guarda do encarcerado tinha a incumbência de arrancar dêle a confissão do crime, afim de se descobrir o destino dado ao dinheiro. Baldaram-se-lhe, (2) porém, todos os esforços. Morreu o moço obstinado no seu silêncio.
Quando essa notícia chegou aos ouvidos da família, enfermou gravemente o irmão do criminoso. Agravou-se-lhe o mal, e, não podendo mais falar, pediu então com insistentes acenos que o levassem... Levaram-no para o hospital. Êle, porém, continuava a insistir. Não era para ali. Como o não entendessem, fez supremo esforço em que se lhe foi a vida e exclamou: “Para o cárcere, sou eu o criminoso”.

(1) Malsinar: infamar.
(2) Baldar: ser inútil, vão.
(3) Cidade da Pérsia, sobre as ruínas de Eubátone.
Alveitar: indivíduo que, sem diploma de habilitação, trata de doenças de animais.

BEM FEITO
“Bem feito” é o grito de vingança que, por primeiro, aprende a criancinha. Infelizmente é muito precoce o sentimento vingativo e antes de saber articular qualquer palavra, já sabe a criança rugir como um leãozinho, quando se vê contrariada. Didi com três anos já sabia dizer “bem feito”. Quando a irmãzinha Celina, com quem sempre turrava (1) recebia um quinau, levava uma queda, quebrava a boneca, apanhava um pito – era infalível o “bem feito” de Didi. Um dia a irmãzinha caiu da escada. Ora, pouco antes os dois pequenos tinham chegado quase a vias de fato; (2) êle se julgara lesado em seus direitos de propriedade sôbre um pão de ló que ela, mambadeira (3) como ninguém tinha comido. Com a intervenção do pai, triunfara a filha. Quando, então, Didi a viu chorando após a queda, vingou-se com um solene “bem feito”. A pequerrucha foi para a cama, pois não tinha sido manha a choradeira com que assustou a mamãe. Contusões sérias e provavelmente lesões internas, em breve levaram a menina à beira da sepultura. Didi, é verdade, às vezes, brigava com a maninha, mas a amava doidamente. Quando percebeu a gravidade da doentinha, ficou aflito sobremodo. No dia seguinte foram chamá-lo para dar o último beijo à irmãzinha que, vestidinha de virgem, já estava no caixão, prestes a seguir para o cemitério... Pouco faltou que êle a não seguisse, tal foi a dor que sentiu o pequeno. Havia, porém, qualquer cousa de misterioso naquele penar infantil. Não eram as saudades naturais, não era a falta da companheira inseparável dos seus jogos inocentes. Didi chorava convulsamente meses e meses decorridos após a morte da irmã. Era – que podia adivinhá-lo? – era o remorso – o próprio remorso de Didi. Não lhe saía dos ouvidos aquela voz terrível “bem feito”que, num momento sinistro, lhe fugia dos lábios. Ela já ferida, mortalmente ferida, e êle a dizer-lhe “bem feito”... O vento que passava, o pássaro cantando, o silvo (1) das máquinas, tudo parecida repetir-lhe “bem feito”. Nuca mais viram cantarolar o pobre Diudi; nunc mais lhe ouviram as gargalhadas francas da infância.

* * *
Anos após, um jovem e fervoroso sacerdote, que renunciara no mundo a um brilhante futuro, subia os degraus do altar para rezar a sua primeira missa. Todos estranharam que o novo ministro de Deus quisesse (2) celebrar em paramentos (3) negros a sua primeira missa. Mas quem o assistia, ao altar, tudo entendeu quando, pedindo êle pelos mortos, o ouviu, por primeiro murmurar: ... minha irmã Celina”. (pp.26-27)



(1) Sonso: tolo.
(2) Envoltórios: invólucros, envelopes (galicismo esta última palavra).
(3) Delinqüente: criminoso.
(4) Esbirras: guardas, soldados.

(1) Silvo: apito.
(2) Quisesse: os tempos do verbo querer, derivado do pretérito perfeito, devem garfar-se com z.
(3) Paramentos: vestes que usa o sacerdote durante as cerimônias litúrgicas.

PELO MEU NETINHO
Subia a fábrica a olhos vistos.
Era uma azáfama (2) crescente porque o dia estipulado (2) no contrato, para a entrega do prédio, estava a chegar. O empreteiro, que já não era de boa catadura, (4) de franzindo o sobrolhos, à medida que os dias do prazo iam minguando. Os andaimes estavam altos. Sarilhos e roldanas (5) em bom número não bastavam para fornecer material aos pedreiros que, de quando em quando, gritavam: “argamassa”. Alguns serventes subiam depressa as escadas bambas, com baldes d’água, pilhas de tijolos, caixões com cimento, etc. Outros acionavam (6) os elevadores que também faziam subir material. Outros ainda por meio de pás planas de cabo longo, atiravam, para o andar superior, tijolos um a um. Entre estes últimos, havia um servente de pedreiro a quem anos não escasseavam. Apesar da idade, sujeitava-se àquele trabalho pesado, por amor de um netinho que lhe era o pensamento, a preocupação e o amor. Órfã de pais, a criancinha ficou aos cuidados do velho operário e por ela êle saiu do seu descanso e sujeitou-se “ao peso do dia e da canícula. (7)
Causava dó vê-lo manejar a pá, a fim de subir tijolos. Às vezes faltava-lhe de todo a energia dos músculos cansados, e o tijolo não podia ser colhido pelo companheiro de cima. Caía no chão e fazia-se em pedaços o tijolo. Pragueava o companheiro, outros zombavam dêle e o feitor ameaçava o pobre velho “pô-lo no ôlho da rua”. O operário esteve muitas vezes a pique de (1) revoltar-se, mas silenciava pensando no filho do seu filho, a quem não queria faltasse confôrto na vida. Um dia, era a ante-véspera do natal, choveram sobre o velho operário motejos (2) e repreensões amargas. O bom homem sentia-se sem fôrças físicas para o trabalho e sem fôrças morais para sofrer as humilhações: resolveu não voltar ao serviço. O feitor então lhe disse que não fosse procurar o salário, porque a multa pela retirada e pelos tijolos quebrados não deixava saldo em favor dêle. Ao chegar em casa, o pobre velho acabrunhado, recebeu nos braços, como de costume, o idolatrado netinho todo afagos e sorrisos. Pediu então ao “papai”, como lhe chamava (3) roupa nova e sapatos novos para ir ver o Menino Jesus no presépio. O velho escondeu as lágrimas que lhe saltaram do coração e, dissimulando, se retirou. A sós com o seu sofre, êle orou assim: “Virgem mãe, pelo amor do vosso filhinho, não me deixeis contristar ao meu: daí-me fôrça e eu volta ao trabalho, para ter com que comprar a roupinha do meu filho, que quer ir ver o vosso no presépio”. Na manhã do dia seguinte, o velho operário apresentou-se ao feitor. Quantas humilhações! Por fim aceitou-o de novo, mas com ordem de atirar os tijolos para um plano mais alto ainda. O velho não vacilou: faria tudo. Feitor e curiosos foram ver se o velho era capaz... Subiram os tijolos arremessados com rigor. “Depressa, depressa”gritavam. O velho arquejava trêmulo. Era o décimo tijolo. Um arranco ainda. O esfôrço foi violento. O tijolo subiu, mas o velho cambaleou e caiu supino. (4) Estava morto. (pp. 34-35)

(1) Fábrica: edifício em construção.
(2) Azáfama: grande atividade.
(3) Estipulado: agendado, combinado.
(4) Catadura: aparência.
(5) Sarilho: cilindro horizontal móvel, em volta do qual se roda uma corda: serve para levar fardos. Roldana: maquinaria com roda gigante, em cuja circunferência cavada passa uma corda.
(6) Acionar: pôr em movimento.
(7) Canícula: o ardor do sol.

(1) A pique: a ponto de.
(2) Motejos: insultos.
(3) Como lhe chamava ou o chamara.
(4) Cair supino: cair deitado de costas.

PRISMAS
A tempestade havia prostrado uma árvore colossal que tinha acalentado (3) mais de um século em seus robustos braços. Era o orgulho da floresta e os mais feroses furacões se haviam desencadeado em vão contra a resistência das suas fibras e firmezas das suas raízes nas camadas do subsolo.
* * *
Passou por aí um botânico, numa excursão científico-recreativa e inerepou (4) o vendaval. Era muito grande o crime de roubar à flora tão belo espécime, criado pelos longos anos, no seio da floresta.
* * *
Passou depois um rico industrial, de mãos sujas de seiva (5) sob a maldição de todas as árvores. Votavam-lhe ódio mortal: para ele, aguçavam (1) seus espinhos, levantavam agressivos os seus ramos e confeccionavam, em secretos laboratórios, os mais violentos venenos. Ele sorriu de prazer, quando viu por terra a grande árvore, de membros estirados, nos estertores de uma agonia lenta. Sorriu, porque iria auferir(2) pigues (3) lucros de desgraça que vitimara o decano (4) das selvas.
* * *
Mais tarde chega um velho recoveiro (5) que, quando em quando, por aí passava por ser o único ponto transitável da floresta. Ao ver a enorme corpulência do vegetal que se lhe atravessara na passagem, embargando (6) a sua récua (7) de prosseguir a marcha, teve palavras de insultos para a pobre agonizante. Tentou desbravar (8) a passagem, cortando os ramos da árvore e lastimava não estarem secos ainda para, sem mais, reduzi-los a cinza.
* * *
À noite, chega à surdina (9) um grupo de selvagens. Havia-lhes chegado aos ouvidos a triste nova. Cobri-use a tribo de luto. “Calamidade, calamidade – clamaram – que crime se cometeu aqui para tamanho castigo? (...) (pp. 34-36)
* * *
(2) Modos diferentes de encarar um mesmo fato.
(3) Acalentar: embalar, aconchegar ao peito. Aqui em sentido figurado.
(4) Inerepou: repreendeu severamente.
(5) Seiva: líquido nutritivo que circula nas diferentes partes dos vegetais.

(1) Aguçavam: adelguçar na ponta, afiar.
(2) Auferir: conseguir, colher.
(3) Pingues: gorgos.
(4) Decano: o mais antigo.
(5) Recoveiro: almmocreve.
(6) Embargar: impedir.
(7) Récua: coletivo de cavalgaduras.
(8) Desbravar: arrotear, preparar um terreno para a cultura.
(9) À surdina: locução adverbial: às escondidas.

FATOS DESPERCEBIDOS (1)
E’ maravilhosa a natureza na marcha incessante das cousas. Pena que os homens não lhe prestem atenção. As causas com seus variadíssimos efeitos, efeitos por seu turno, causas de novos efeitos, formam através dos tempos a rede admirável dos acontecimentos em séries entrelaçadas, intricadíssimas. Se acompanhássemos qualquer causa desde a produção do seu primeiro efeito e, através dos subseqüentes, (2) sem a perder um instante de vista, continuássemos a perseguí-la com a nossa atenção, êsse fio lougo de sucessos nos pasmaria. Ao lado daquela causa estudada, havia outra e mais outras, cada qual com seu fio de seqüências (3) – fios que, paralelos às vezes, embaraçados outras, formam precisamente a urdidura (4) admirável, a rede de fenômenos a que nos referimos. Que pena perderem-se assim, sem que o homem lhes tenha podido observar a realização, concatenação (5) com suas causas e efeitos próprios!
Para não ir às alturas do céu ou às entranhas da terra, junto de nós, em nós mesmos, há desses acontecimentos de que somos inconscientes. Lá no seio da floresta virgem, na furna (6) pavorosa de um despenhadeiro, entre árvores que viveram éculos e tombaram carcomidas (7) sem que homem algum lhes contemplasse a majestade, nesse recesso (8) escuro, um dia se batem duas feras. Um tigre e um leão medem suas fôrças numa luta feroz. Nenhum vence, nenhum é vencido. Morrem unidos na luta. Os Césares (1) apaixonados pelos espetáculos do Circo, teriam dado tesouros a quem lhes proporcionassem um espetáculo como êsse, que ninguém viu. No entanto, as ossadas fundidas pela raiva, como se foram de um só animal, aí estão demonstrando que a luta de morte se deu ali. Mais tarde dos estudiosos dos fósseis (2) poderão também ler nas camadas da terra, nessa História que tem seus documentos e provas, o fato sangrento da floresta.
Como se sente pequenino o homem, quando percebe que a natureza com suas leis admiráveis, sem lhe dar satisfação alguma, desenrola, através dos séculos, os fios maravilhosos dos seus acontecimentos! Às vezes lhe dá nas mãos da consideração a ponta de um desses fios, vem o homem recolher todo ele, mas parte-se o fio – e não se encontra a extremidade, que se perde no mistério. Filha de Deus, a natureza convence ao homem da sua mesquinhez e o convida a reconhecer a grandeza do Criador. (pp.101 e 102)

(1) Despercebidos e não desaparecidos.
(2) Subseqüente: seguinte.
(3) Seqüências: continuações.
(4) Urdidura trama, tecido.
(5) Concatenação: encadeamento, ligação.
(6) Furna: caverna.
(7) Carcomidas: escavadas, arruinadas, roídas.
(8) Recesso: recanto, escosso.

REFLEXÕES
Meia noite. Imerge, (1) no caso, a ponta de sua cauda o 31 de dezembro, e já assoma no oriente tenebroso, (2) o novo ano. Diz-se: é a roda do tempo. Mas não se diz bem: não é roda o tempo. Seu movimento não é circular. É uma ilusão supô-la. Não há rotação nos dias, nem nas estações. O que é rotativo sempre volta ao ponto de partida. Os anos se sucedem, os anos se impelem um ao outro; mas não há regresso. É absurdo supor um rio circular, pois o declive que lhe faz deslizarem as águas da fonte, é um dique à vota delas à origem. Para desconforto dos que desperdiçaram dias e anos, eles não tornarão a passar-lhe pelas mãos. O passado é o túmulo do tempo e não há exumá-lo (1) daí. Ondas que me beijastes ontem (2) as plantas dos pés, não voltareis mais a banhar estas margens que piso. E ainda quando volatizadas subísseis para as nuvens, afim de remontardes à fonte do vosso rio, ainda assim, das vossas colegas, as ondas do tempo, eu podia afirmar que não regressarão. Elas se parecem convosco, ondas do rio, mas nisto divergem muito.
Não haverá porém, aqui a flusão do viajante? Falo de quem viaja no combóio (3) e vê através de um postigo o desfilar das casas, das árvores, dos montes. Não podiam as ondas do tempo estar no caso desses montes que parecem correr? Somos nós que passamos ou é o tempo? Se o tempo em última análise é a mudança e nós mudamos sempre, já não vale a hipótese de estarmos parados à margem da corrente. Se nós, portanto, somos a verdadeira onda do rio, apelemos para ela, onda consciente, para ver se retrocedemos (4) já, um passo sequer. – Diz-se: a juventude passou; dir-se-ia melhor: eu era jovem, já não o sou. Moços que correis pela vida, depressa chegarei à velhice, se a morte vô-lo permitir. Não podeis retardar nem acelerar a vossa marcha, que é sempre a mesma, nas horas de tédio (5) e nas horas de prazer. Atentai bem para onde sois arrastados – nisto vai o segredo do vosso feliz destino. (pp. 111-112)

(1) Imergir: mergulhar, Antônimo: emergir.
(2) Tenebroso: adjetivo derivado da palavra latina tenebra – treva e o sufixo oso que indica abundância.

(1) Exumar: desenterrar. Derivado de ex e humus – terra.
(2) A grafia hontem em vez de ontem não se justifica etimologicamente.
(3) Combóio: trem.
(4) Retroceder: regressar.
(5) Tédio: aborrecimento.

FÉRIAS
Quando a acácia altiva se despe de sua roupagem verde, e encastoa (2) douro as extremidades dos seus ramos, as férias não tardam. Para o estudante o amarelecer florido da conhecida leguminosa, é como purpurescer risonho de um dia venturoso. As férias têm a fascinação (3) irresistível sôbre o coração imaginoso do estudante. Férias – reino encantado de visões fagueiras (4) e promessas sedutoras! Há, entretanto, muita insídia nesse mar de venturas. O educador experiente experimenta sentimentos inversos ao do educando, pelo aproximar-se desse tempo – parênteses aberto nos labores escolares, no qual não raro se aninha a desventura. A alma do jovem estudante é um vaso aberto, em que encontra fácil acolhida tudo quanto se intitule prazer. Gozar – é a voz freqüente, que faz pulsar forte o coração da juventude.
Mas para infelicidade geral o prazer é muitas vezes envenenado, e o coração inesperto que o sorve, suicida-se sem o saber.
Os estudos absorventes entretinham a alma sedenta de gozo como prazer sadio do cumprimento do dever, da aquisição da verdade, do devassamento de novos horizontes que a ciência rasga aos olhos dos seus cultores.
As férias fizeram secar essas fontes de gozo puro. Descansa o espírito, mas o coração não quer férias. Ei-lo à procura de outros prazeres, menos árduos de fruir. As diversões ou passatempos voam ao encontro dele. Mas, pobre coração, esse prazer fácil, sedutor, ilude tanto.
Quantas vezes não morre o coração, onde julgava encontrar felicidade! Morre, sim, porque perdeu a vida seus nobres menis, seus sentimentos mais belos, uma virtude nutrida com tantos esforços e renúncias. E como é triste o ruir de uma alma. Férias cruéis essas, que ocasionam tão desastrados desmoronamentos! Descanso fatal o que degenerou em ruína! Uma grande porta fechará o providente estudante aos males que lhe insidem a alma se se precaver das chamadas “diversões”, desde quando não sejam informadas pelos princípios cristãos. (pp. 121-122)

(2) Encastoar: enganar, embutir.
(3) Fascinação: atração.
(4) Fagueiras: alegres, prazenteiras

DISCORDÂNCIAS
Na minha terra todos me julgavam um sábio; aqui, estou no rol dos ignorantes. Meus conterrâneos eram topeiras, aqui todos são águias.


Teimavam dois irmãozinhos, numa acalorada discussão. Um sustentava que a concha é convexa, o outro afirmava ser côncava.

Na literatura dos morcegos, todas as poesias melancólicas inspiram-se na aurora; os poema alegre e festivos sempre falam do ocaso.


Pedro insiste em que Londres fica muito longe. João não concorda: parece-lhe at[é muito perto.
Este é de York; (1) aquele de Nova York. (p.271)

(1)York: cidade da Inglaterra, à margem do Ouse.


FONTE:
TABORDA, Radagasio. Crestomatia: excerptos escolhidos em prosa e verso – Dos melhores escritores brasileiros e portugueses. 6. ed. Edição da Livraria do Globo: Porto Alegre, 1936.

Tuesday, July 11, 2006

Sales Cunha



Mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará
Licenciado em História pela Universidade Estadual do Ceará


e-mail:cunha_netosdb@yahoo.com.br

Cronologia de Dom Lustosa



CRONOLOGIA DE DOM ANTÔNIO DE ALMEIDA LUSTOSA, SDB

1886
11/02 – Nasce em São João Del Rei, Minas Gerais, Antônio Almeida Lustosa. Nessa data comemorava-se o aniversário de primeira aparição da Imaculada de Lourdes.

1905
29/01 – Ingresso na Congregação Salesiana

1912
28/01 – Ordenação sacerdotal

1924
04/07 – Eleito bispo de Uberaba – MG, Diocese do Triângulo mineiro, pelo Papa Pio XI.

1925
11/02 – Sagrado Bispo em São João Del Rei pelas mãos de Dom Helvécio Gomes de Oliveira, Dom Emanuel Gomes de Oliveira e Dom Benedito Paulo Alves de Souza.
01/03 – Toma posse em Uberaba
17/04 - Aprova os estatutos da Associação São José, de senhoras encarregadas da manutenção do seminário.
01/10 – Reabre é reaberto o seminário diocesano com dois meninos vindos de Araxá.

1926
20/05 – Consegue, do Papa Pio XI, a transferência da antiga catedral de Uberaba das Mercês para o centro da cidade.

1928
17/12 – Nomeado bispo de Corumbá – MS.
28/12 – Toma posse na Diocese de Corumbá

1931
10/07 – Promovido a Arcebispo de Belém – PA pelo Papa Pio XI.
15/11 – Toma posse do arcebispado em Belém por procuração

1932
15/12 – Chega a Belém

1941
19/07 – Transferido pelo Papa Pio XII para a Arquidiocese de Fortaleza.
30/09 – Realiza uma de suas últimas funções litúrgicas como Arcebispo de Belém, a sagração da Basílica de Nossa Senhora de Nazaré.
05/11 – Toma posse na Arquidiocese de Fortaleza, às 19 horas com a presença dos Srs. Bispos de Sobral e Limoeiro do Norte e representantes da Arquidiocese de Belém do Pará e da Diocese de Crato, na Igreja Pequeno Grande – Catedral Provisória.

1947
Convocou o 2º Sínodo Diocesano

1957
10/02 - Fundou o Instituto dos Cooperadores do Clero, com a finalidade de dar aos Párocos, cooperadores leigos que os ajudassem nos trabalhos paroquiais.

1963
16/02 – O Papa João XXIII aceita a renúncia de Dom Antônio de Almeida Lustosa.
29/05 - Acompanhado de três padres da Arquidiocese de Fortaleza, deixa, às 06 horas da manhã, em camionete rural, a terra que fora o campo de seu pastoreio, durante quase 22 anos.

1974
14/08 – Morre, aos 88 anos de idade, no Aspirantado Salesiano em Carpina – PE, onde viveu seus últimos quinze anos de vida. Encontra-se sepultado na Catedral da Arquidiocese de Fortaleza.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Internet
http://www.arquidiocesedebelem.com.br/arquidiocese_belem/arcebispos.php Pesquisado em 14/07/2006, às 9h 30m.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B4nio_de_Almeida_Lustosa
Pesquisado em 14/07/2006, às 10h.
http://www.arquidiocesedefortaleza.org.br/ig_hist2.asp?pg=2
Pesquisado em 14/07/2006, às 10h 15m.

Crônicas seletas de Dom Lustosa



SALVA TEU IRMÃO
Em Toulon achava-se no porto uma fragata chamada “La Provence”.
Tinha-se dado um acidente a bordo dessa embarcação. Em conseqüência disso, um marinheiro caiu no mar, e estava em perigo eminente de soçobrar.
Naquele lugar, o mar oferecia grande perigo. O pobre marujo já se tinha submergido, mas ainda havia probabilidade de voltar à tona. Diante desse perigo, dois homens se atiraram ao mar para salvá-lo: o capitão, M. Aestrachi e o capelão de bordo, Padre Tenaille.
Quando o pobre náufrago subiu à tona, o capelão conseguiu agarrá-lo e assim livrá-lo da morte. Os dois heróis, que expuseram suas vidas para salvar a do pobre tripulante da fragata, foram largamente encomiados pela imprensa contemporânea.
Há homens tão desumanos que tiram a vida do seu semelhante para se apropriarem dos seus bens. E há homens tão humanos que expõem a própria vida para salvar a vida do próximo.
Quando a fé vem em auxílio das boas disposições humanas, a generosidade em favor do próximo cresce de ponto e as ações heróicas se multiplicam.(p. 48)

UM PROGRAMA
Trabalho e oração é o binômio que conduz à felicidade. O homem, que ora, aplica as potências da sua alma em se entreter com Deus. O homem que trabalha, com um fim santo, aplica suas forças físicas e intelectuais ao serviço de Deus. Santo Antão vivia sozinho no meio de um vasto deserto. Dava-se à oração, com admirável perseverança. Mas, por vezes, confessa ele, sentia-se triste porque sua oração era atormentada por divagações e trevas. Recorreu então a Deus, com grande fé, pedindo um remédio para a sua alma. Entrou então em sua cela e lá viu um homem que trabalhava atentamente e depois orava. Ficou persuadido de que era um anjo mandado por Deus para lhe dizer: Faze como eu. E o Santo tomou como programa de vida – Orar e Trabalhar.
Realmente, as duas ocupações, alterando-se, completam-se. Depois da oração, o trabalho é um descanso; depois do trabalho, a oração é um repouso. Na solidão imensa em que vivia o grande anacoreta, essa alternativa fazia-lhe o tempo curto. Lucrava a oração que se tornava mais atenta; lucrava o trabalho que se tornava mais diligente. São Paulo, que se exercitava em altíssima oração, a ponto de ser arrebatado ao terceiro céu, ocupava-se em fazer cestas como simples operário.(p.46)

O CAVALO ROUBADO
O imperador Henrique, célebre por suas grandes virtudes, tinha recebido de presente um cavalo de qualidades raras. Várias vezes realizou os seus passeios nessa cavalgadura, digna das cavalariças imperiais.
Quem lhe fez presente desse animal foi o superior de um convento, o qual o havia comprado de um desconhecido.
Sucedeu que, certo dia, ao entrar o imperador em uma cidade montado no seu cavalo, um soldado se aproximou e disse que aquele cavalo lhe fora roubado... De fato, um ladrão de cavalos desconhecido o havia roubado e vendido ao superior do convento. O santo imperador não perdeu a calma. Disse ao soldado que podia levar o animal com a sela imperial e tudo mais. Supôs o soldado que o imperador não estivesse falando seriamente. Mas este insistiu. A comitiva do imperador ficou admirada e mais ainda o pobre soldado.
O respeito aos bens alheios nasce, naturalmente, nas consciências bem formadas. Quando esse exemplo vem do alto, das autoridades, das pessoas altamente colocadas, as pessoas humildes aprendem a reconhecer os direitos dos seus semelhantes.
O fato acima é relatado pelo conhecido historiador Baronius.(p. 43)

MANTENHA A PAZ DA ALMA
O Santo Cura d’Ars, certa manhã, recebeu uma carta de insultos que o tratava como criminoso e hipócrita. O Santo sorriu. Não perdeu o seu bom humor.
Á tarde do mesmo dia, recebeu outra carta inteiramente diversa. Era toda de elogios. Chamava-lhe santo. O Cura d’Ars sorriu, como ao receber a primeira carta.
Depois mostrou ambas as cartas a algumas pessoas, para mostrar como é desprezível o juízo dos homens e comentou: a primeira não me fez pior do que sou, a segunda não me fez melhor.
O juízo de Deus faz de nós é que nos deve impressionar, porque ele conhece os refolhos da nossa alma. Os homens ainda mais bem intencionados não podem adivinhar o que somos no nosso íntimo.
Dá-se, porém, que o interesse entre muito nos juízos humanos. Se alguém espera de nós algum favor, é fácil que nos dirija louvaminhas e lisonjas. Se alguém nos olha com maus olhos, podemos esperar juízos depreciativos, talvez até caluniosos.
Não nos vangloriemos com os louvores, nem nos acabrunhem os vitupérios. A boa consciência nos baste e a paz não desertará do nosso espírito.(p. 40)

OS TESOUROS DE CRESO
O rei Creso era possuidor de uma fortuna imensa. Punha a sua felicidade nesse acúmulo de ouro, como se consistisse a felicidade em dispor dos bens terrenos a mancheias.
Contemporâneo de Creso era o filósofo Sólon, o qual, certo dia, foi interpelado pelo rei que desejava ouvir do filósofo algum elogio às suas riquezas. Mas Sólon o decepcionou porque não duvidou em lhe dizer, como toda a franqueza, que não estava a felicidade no possuir muito ouro.
Creso não gostou do conceito emitido pelo austero filósofo. Sucedeu, porém, que aquele teve de entrar em guerra. Foi derrotado e feito prisioneiro. Seu vencedor foi cruel para com ele: condenou-o a ser queimado vivo.
Todo o ouro do infeliz rei não pode livra nem da humilhação, nem do suplício. É bem provável que, ao ver a fogueira em que ia ser colocado, lhe tenham ressoado aos ouvidos as palavras de Sólon, ao lhe dizer que a felicidade não residia no ouro acumulado em suas mãos.
O Mestre Divino nos recomenda que tratemos de ajuntar tesouros não na terra, mas no céu, onde a ferrugem não estraga a riqueza.
Se contássemos os homens mais felizes da terra e se entre eles encontrássemos algum rico, verificaríamos que a causa da sua felicidade não seria a riqueza, mas a generosidade com que a distribuía.(p.37)

CUIDADO COM O GRISU
Nas minas de carvão, por vezes, aparece uma pequena nuvem esbranquiçada de um gás a que chamam grisu. Trata-se de uma das numerosas combinações do hidrogênio com o carbono.
Os operários que trabalham nessas minas têm grande cuidado para evitar a explosão do grisu, pois e muito inflamável.
Acender um fósforo no interior dessas minas pode ocasionar um desastre pavoroso.
Há temperamentos eminentemente inflamáveis. Uma fagulha pode provocar neles um incêndio como nas minas. A providência a tomar, a fim de evitar a explosão, é arejar a mina para que a nuvem de grisu se difunda na atmosfera. Aquele amigo precisa também dissipar seu mau humor, a fim de se não inflamar ao contacto de qualquer atrito.(p. 30)

FALSAS PROFECIAS
De vez em quando corre a notícia de que o mundo se vai acabar em tal ano... Muitos se apavoram e o mundo não se acaba.
Quando se aproximou o ano 1000, circularam muitas notícias desse gênero. Algumas nasceram da falsa interpretação dos Livros Santos, por exemplo do Apocalipse; outras de fantasias doentias que propalam o que imaginam.
Poucos anos antes do ano 1000, diziam que a festa da Anunciação (25 de março) ia coincidir com a sexta-feira santa e então seria o fim do mundo. Deu-se a coincidência, caiu a sexta-feira no dia 25 de março e o mundo não se acabou.
O Santo Abade Abdon, de Fleuri, que viveu por esse tempo, dirigiu-se ao Rei, para lhe pedir que impedisse a circulação dessas notícias imaginosas, pois não havia bases para elas. Homem de grande ciência e virtude, compreendeu que não se devia propalar uma “profecia” que não tinha a aprovação da Igreja. O homem deve estar sempre de malas arrumadas para a última viagem, pois o fim do mundo para ele é nesse dia da partida para a eternidade.
(p.31)

DOMINA-TE
Conta frei Celestino, O.F.M., que o célebre bispo, Ketteler, quando moço, tinha um caráter extremamente violento.
Esse moço, entretanto, tinha belíssimas qualidades. Entrou no seminário, ordenou-se e depois foi sagrado bispo.
Trabalhou tanto na reforma do seu caráter que conseguiu dominar-se soberanamente.
Já no governo da sua Diocese, teve de enfrentar terrível perseguição que a impiedade armara contra os ministros de Deus.
Certa vez, ia pela rua e uma criança correu ao seu encontro e tomou-lhe a mão como para beijá-la.
Entretanto, cuspiu-lhe na mão e quis correr. Ma o bispo a deteve pelo braço e lhe perguntou: “Minha filhinha, quanto foi que te deram para cuspir em minha mão” ? – “Dois tostões – respondeu”. – “Pois bem, toma dez tostões, para nunca mais fazeres isto”. Nada perdeu da sua mansidão conquistada, em vários anos de luta, com seu próprio temperamento, impulsivo e colérico.
Ninguém diga: “Não posso dominar, não sei conter nos assomos de indignação, quando vejo ou sofro um desacato”. Com um trabalho constante, auxiliado pela graça, que não falta, sempre poderás dominar os ímpetos de cólera. É indispensável, porém, o exercício, para nos dominarmos nas surpresas das contrariedades que por vezes nos assaltam.(p.29)

O ELEMENTO SOBRENATURAL
O santo Arcebispo de Granada, de nome Fernando, tinha sido hábil conselheiro do rei, que nele depositava toda a confiança e lhe confiava o andamento de negócios muito importantes.
Isto não deixava de causar inveja a alguns cortesãos. Estes procuravam qualquer ponto da vida de Fernando para seus reparos e censuras. Certa vez,foi o tempo perdido – diziam eles – diariamente, com a missa, quando negócios gravíssimos estavam a exigir dele solução pronta. Fernando veio a saber disso, mas não se afligiu. Deus prazerosamente esta razão: “Um soberano desta terra me confiou graves problemas a solucionar. Cumpre-me recorrer ao Soberano dos Céus que tem luzes, forças e tudo quanto hei de mister para levar a bom termo os negócios do meu rei”.
Não é perdido o tempo da missa. Uma hora abençoada por Deus vale por muitos dias e talvez por muitos anos de atividade exaustiva, de forças meramente humanas.
Tempo perdido é sobretudo o das atividades senão contra ao menos sem Deus. Nosso povo, de vez em quando assim se expressa: o muito sem Deus é pouco; o pouco com Deus é muito. Os cálculos de fé são por vezes não contrários, mas independentes das leis matemáticas.
A matemática desconhece o elemento sobrenatural.(p.14)

FONTE:
LUSTOSA, Antônio de Almeida. Respingando. 2˚ Volume. Imprensa Universitária do Ceará: Fortaleza, s


UMA LENDA
Meus amigos, vou-lhes contar uma lenda. Lenda é lenda, mas encerra alguma bela lição.
Era na Rússia. Não na Rússia de hoje, mas na antiga, em que a Religião Católica podia viver e vivia florescente.
Fazia-se ali a festa de São Cassiano, de quatro em quatro anos, e também a de São Nicolau, mas todos os anos.
Eis aqui a razão de ser um santo quatro vezes mais festejado do que o outro.
Certo dia, um carreiro conduzia grande carga no seu carro. Ao atravessar um terreno úmido, o carro atolou até o eixo. P carreiro esfalfou-se, lutando por conseguir arrancar o carro da lama. Os bois que tiravam o carro eram impotentes. Passou por ali São Cassiano. Compadeceu-se muito do carreiro, disse-lhes mui belas palavras de animação e se foi. Passou depois São Nicolau. Meteu-se na lama, ajudou o carreiro no descarregar o carro e tanto fez que livrou o carro do atoleiro. Suado e coberto de lama, prosseguiu o seu caminho.
A história é inverossímil, mas encerra uma bela lição: se nos é possível, auxiliemos nossos irmãos praticamente, a fim de se tornar eficiente a nossa caridade.(p. 45)

PENSAR E AGIR
Habilíssimo escultor fez uma estátua do Pensamento. Conseguiu fazer um homem de mármore com tal expressão que parecia realmente mergulhado em profunda meditação. Os sobrolhos franzidos, os músculos da face retesados, o olhar profundo. Dir-se-ia uma pessoa realmente reconcentrada, absorta por uma grande idéia.
Mostraram a São Felipe Néri a primorosa escultura. Chamaram-lhe a atenção para aquele olhar, alheado inteiramente de tudo o que estava em derredor e todo voltado para dentro da alma... O Santo, que era ótimo psicólogo, observou tudo atentamente, e depois disse: “Entretanto, eu noto nessa estátua um grande defeito!” – “Pois bem- disse o Santo – o defeito é que essa estátua pensa, pensa, mas, mas... nunca executa.”
Há muita gente como essa estátua do Pensamento. Vivem com belos projetos; idealizam castelos e mais castelos; mas seus planos não passam de planos. Os sonhadores, oh! Os sonhadores. Muito melhor seria que sonhassem menos e agissem um pouco mais.
(p.43)

OS PRETEXTOS DO VÍCIO
Meus amigos, vejam lá esta. Certo alfaiate pouco escrupuloso tinha o feio costume de ficar com retalhos de fazenda bem grandes, quando entregava prontas as roupas aos fregueses. Ora, uma bela noite ele teve um sonho pavoroso: alguém lhe roçava o rosto com uma enorme bandeira. E a bandeira era feita dos retalhos que ele havia roubado aos fregueses. Impressionado, contou à mulher o sonho. Quando, então, ela via que o marido ia entregar alguma peça de roupa encomendada, logo lhe dizia: “Recorda-te da bandeira!”
E, com isso, o homem da agulha e da tesoura passou muito tempo sem roubar cousa alguma. Um dia, porém, caiu na tentação. Escondeu um bom pedaço de fazenda fina com que fizera um terno de roupa encomendada. Quando a mulher lhe disse, como de costume: “Recorda-te da bandeira!”, ele respondeu: “Mulher, desta cor não me lembro de ter visto retalho algum na bandeira”.
Quando a boa vontade falha, qualquer pretexto serve. O alfaiate se esqueceu depressa da lição tão grave que recebera.(p.47)

NÃO FAZER AOS OUTROS O QUE NÃO QUERES QUE TE FAÇAM
Meus amigos, os grandes artistas tinham, muitas vezes, suas originalidades.
Do grande pianista Chopin conta-se que tinha um amigo, sapateiro modesto, o que se tornou rico. Um dia o musicista foi almoçar em casa do amigo. Logo depois da refeição, o dona da casa pediu a Chopin que tocasse alguma cousa. O pianista não queria tocar e se escusava dizendo que havia feito a refeição naquele momento. O dono da casa insistia dizendo: “Eu quero apenas ver como se faz”.
Passados alguns dias, Chopin convidou o amigo para almoçar com ele. No meio da refeição o célebre artista faz colocar na sala de jantar uma banca de sapateiro e pede ao convidado que lhe ponha meia sola em um par de sapatos.
Todos os presentes estranham o convite tão original. Mas o pianista se explica: “Eu quero ver como se faz”.
Este fato faz lembrar a fábula da raposa que convidou a cegonha para jantar com ela. Na mesa da raposa só havia iguarias líquidas servidas em pratos rasos. A raposa, com sua astúcia, ingeriu todo o jantar. A convidada, de longo bico, ficou em jejuem. Dias depois, a cegonha retribuiu a gentileza. Na sua mesa só havia bilhas e moringas de colo longo. Desta vez foi a raposa que ficou a ver navios.
Não faças a outrem o que não queres que te façam.(p.48)

O BOM SENSO
Um pai, querendo pôr à prova o bom senso dos seus dois filhos, disse-lhes: Aqui está uma laranjeira carregada de frutos. Eu vou dar a um os frutos sem a árvore, aos outro a árvore sem os frutos. O mais moço escolheu os frutos, o mais velho, a árvore. No dia seguinte, o mais velho tinha árvore e frutos, o mais moço, nem árvore nem frutos.
Um pai deixou a seu filho uma educação má e a herança de cem mil cruzeiros. Outro pai deixou uma boa educação e nenhum bem de herança.
Dentro de alguns anos, o filho do primeiro pai estava sem dinheiro e sem educação; o filho do segundo com uma bela fortuna e ótima educação.
Os que só cuidam de gozar nesta vida e desprezam a fonte da verdadeira felicidade, que é a prática da vida cristã, demonstram não ter bom senso. Nada tão triste como chegar ao momento da morte com as mãos vazias de boas obras e a alma cheia de más ações.(pp.49-50)

SER PRECAVIDO
Meus amigos:
Em X havia animada feira de gado cavalar. Todas as semanas, ali se reuniam centenas de cavalos. Os vendedores e compradores lá estavam a examinar os dentes e cascos dos eqüinos de todos os tamanhos e cores.
Mas rara era a semana em que ali não registrava um desastre de coice animal. Certo dia passou por ali um charlatão vendendo um preventivo contra coices. O original negociante formou um grande círculo de curiosos e lhes falou assim: “Dentro desta caixinha lacrada está o prodigioso preventivo. É infalível. Quem o usa nunca é atingido por coice de cavalo. A caixinha só pode ser aberta à noite; se abrirem de dia, perde-se tudo. E é baratíssima.
Nosso bufarinheiro vendeu todo o estoque e desapareceu.
Á noite, os possuidores do precioso preventivo abriram cuidadosamente a caixinha. Dentro, encontraram um cordãozinho de três metros de comprimento e um bilhetinho com estes dizeres: “Quem quiser evitar coice de cavalo, passe três metros longe dele”.
Para muitos males também de ordem moral só existe um preventivo – fugir das ocasiões, pois a ocasião faz o ladrão.(pp.50-51)

EVITAI AS QUESTÕES
Dois ratos encontraram um queijo tentador. Era mesmo de encher os olhos! Belo, cheiroso como ele só. Os dois felizardos resolveram dividi-lo ao meio. Para evitar questões, pediram ao juiz que fizesse a divisão. O juiz era um respeitável macaco. Sentou-se à mesa. Lá estavam um facão e uma balança. Ia-se proceder com impecável justiça. O juiz mediu com o olhar a saborosa esfera e deu o golpe. A balança acusou maior peso em uma parte do que na outra. “Isto se concerta” – diz o juiz – e deu uma formidável dentada na parte mais pesada. A balança fez ver que essa parte ficou mais leve do que a outra. O íntegro juiz deu nova dentada nesta outra parte. Não conseguiu equilibrar as partes: uma ficou pesando menos que a outra. E a operação continuou: mais um naco desta, mais um daquela...
Resultado: a saborosa esfera passou integralmente para o nobre estômago da Justiça. Mas o meretíssimo juiz, por nímia gentileza, nada cobrou pelos seus serviços.
Há um provérbio popular que diz: Quem anda em demanda, com o demo anda. (pp.37-38)

O BOM AMIGO
Às vezes passa a alguma boiada por esta estrada. No meio dos outros bois, vai algum jungido a outro. É uma junta que vai entre os outros bois.
Perguntei para que aquilo. Os bois caminhando soltos e só aqueles dois atrelados um ao outro.
Então me explicaram que um deles era “marruá”, ou seja, boi novo, ainda não domesticado. Jungia-se a outro boi manso para que ele fosse contido, quando quisesse disparar, ou investir contra alguém. O boi manso controlava perfeitamente o boi bravo.
Feliz quem encontrou na vida um bom amigo. Quantas vezes um moço imprudente, impetuoso, desajuizado, se tem a felicidade de estar ao lado de um bom amigo, sente logo os benéficos efeitos da boa amizade! Quer-se precipitar, a mão amiga o contém; está para resvalar, o braço amigo o ampara. Que tesouro um bom amigo! Por isso o sábio faz tão belo elogio do bom amigo.
Quem o encontrou, encontrou uma riqueza. Bem diz o brocado: dize-me com quem andas e dir-te-ei que és.
(p.22)

TANCHEMOS BOAS ESTACAS
O verbo tanchar já caiu da moda. Quase só se usa no antigo provérbio: “Quem muitas estacas tancha, alguma lhe há de tachar”. Mas deixemos passar o têrmo arcaico. Quem viaja nos grandes rios ou em certos mares nota que o piloto está sempre a observar as balizas que marcam o canal. Sem esses balizas é inevitável o encalhe ou abalroamento da embarcação. Essas balizas são, muitas vezes, simples estacas tanchadas ao longo do canal. O barco da nossa vida navega em rios tortuosos. Aqui, um banco de areia, ali um escolho. Ah! Se não estiver bem balizado o canal! “Mas quem nos tanchará as estacas-baliza?” – Nós mesmos. O moço já sabe que aquela leitura lhe foi prejudicial – tanche ali uma estaca. Aquela taberna causou tanto mal à sua vida passada – tanche ali uma estaca. A mesa do pano verde quanta lágrima já fez derramar a sua família! Tanche ali uma estaca. Já sabe que aquele é um mau inimigo, tanche ali uma estaca.
Aí está um roteiro traçado pela experiência pessoal.(p.10)

FONTE:
LUSTOSA, Antônio de Almeida. Respingando. 2˚ Volume. Imprensa Universitária do Ceará: Fortaleza, s/d.

Socializando a pesquisa sobre Dom Lustosa

Muitos amigos já me ouviram falar a respeito de DOM ANTÔNIO DE ALMEIDA LUSTOSA.
Ultimamente tenho me dedicado a reunir algumas de suas produções literárias, especialmente crônicas.
Por meio delas, Dom Lustosa, salesiano e Arcebispo de Fortaleza - CE nas décadas de 1940 a 1960, procurava sensibilizar leitores para o cultivo de valores e a responsabilidade social.
Nesse espaço pretendo disponibilizar algumas de seus textos e considerações em torno de sua produção com base na pesquisa que estamos realizando.
Esperamos que esse espaço seja um fórum de discussão capaz de reunir dados para a compreensão das contribuições desse intelectual na sociedade brasileira.